sexta-feira, 6 de março de 2009

Frontal com fanta.


Eu não me lembro muito bem se tinha 13 ou 14 anos na primeira vez em que fiquei invisível. Eu acho que tinha 14, estava frio, devia ser inverno e eu faço aniversário no verão. Também podia ser no inverno antes de eu fazer 14, mas eu acho que não, porque a minha irmã já estava usando aparelho e estes dias eu perguntei e ela tem certeza que tinha dez anos quando começou a usar. É muito provável que eu já tivesse ficado invisível muitas vezes antes, tenho certeza que sim. Quando a minha mãe e o meu pai discutiam, quando ele gritou que ela é que quis ter filho e agora não gosta de ficar com as crianças e só quer viajar, quando ela bebia e andava quase nua pela casa, quando o meu irmão punha a mão nos peitos da namorada, quando o meu pai mudava a televisão de canal pouco antes do fim do filme que eu estava assistindo havia mais de uma hora, é claro que eu estava invisível, só que não percebia.

Eu estava na escola na primeira vez que percebi que estava invisível. O professor mandou todo mundo se apressar para o passeio. Eu demorei a me levantar juntando as coisas, todos saíram e o professor olhou para a sala, olhou na minha direção, apagou a luz, saiu e fechou a porta. Talvez eu tenha ficado invisível para não ir naquele passeio, não queria passar o dia vendo as meninas mais lindas me virando a cara, e todos aqueles meninos idiotas gritando e correndo e se batendo. Fiquei algum tempo parado, peguei minhas coisas e saí da sala. Caminhei pelo corredor, cruzei com alguns alunos, olhei bem para eles e eles não me viram. Saí do colégio e caminhei seis quadras até a minha casa, passando por muitas pessoas que não me viram. Entrei em casa sem ser visto, fui para o meu quarto.

Saí do quarto e minha mãe estava jantando, com minha irmã. Meu irmão mais velho vai chegar no próximo fim de semana e elas querem arrumar a casa. Ele vem com a namorada e vai dormir no meu quarto, eu vou dormir com a minha irmã, no chão do quarto dela. Elas falaram todo o tempo, decidindo o que ia acontecer comigo, sem me ver. Comi frango com arroz e legumes e fui ao banheiro. Abri o armário dos remédios, peguei um remédio da minha mãe, frontal. Li a bula. "Componente ativo: alprazolam. Indicado no tratamento de estados de ansiedade. Seu mecanismo de ação exato é desconhecido." Talvez fosse isso, ansiedade se cura com remédio. Não é recomendado a pacientes psicóticos. Os sintomas da ansiedade são: tensão, medo, aflição, agonia, intranqüilidade, dificuldades de concentração, irritabilidade, insônia e ou hiperatividade. Os sintomas da ansiedade sou eu. Peguei o vidro e fui para o meu quarto. Tomei dois, devia ter pegado água, não é bom tomar remédio com fanta. Deitei e dormi.

Acordei, era outra pessoa. E continuava invisível.


(Jorge Furtado)

Um comentário:

Dahare :* disse...

Ah, me emocionei! *-* Sabe que eu adoro seus textos, né?